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Antropologia
O papel do antropólogo cristão – na sociedade, academia e igreja

O papel do antropólogo cristão – na sociedade, academia e igreja

Por Ronaldo Lidório*

Em uma informal roda de conversa com universitários em São Paulo, alguns anos atrás, ouvi a pergunta: um antropólogo pode ser cristão? Enquanto pensava, surgiu uma indagação complementar: um cristão pode ser antropólogo? As perguntas estavam embebidas de uma percepção coletiva de incompatibilidade entre a antropologia e a fé cristã, ou mesmo entre a ciência e a fé. Iniciei a resposta afirmando que nem todo antropólogo é cristão, mas todo cristão deveria possuir, por natureza, interesse antropológico.

Fé cristã e ciência são compatíveis e transitam pela esteira da busca pela verdade. Uma das diferenças, e essa significativa, é o código autoritativo de cada segmento. A ciência busca evidências ou fatos que indiquem a verdade por meio de um processo cíclico de pesquisa, teste, comprovação e contestação, que vai se firmando no consenso geral. O cientista não cristão e não religioso investiga as evidências com seus pressupostos estabelecidos, normalmente materiais e racionais, buscando, assim, fatos comprováveis, abordando o universo e a vida como frutos do acaso mecanicamente coincidente, colocando-se em postura de distanciamento dos artigos espirituais, como a fé em um Deus pessoal.

A fé cristã se baseia em fatos universais revelados nas Escrituras Sagradas e observa os demais fenômenos a partir dessa lente e cosmovisão, como parte de uma grande história revelada por Deus. A cosmovisão cristã se enraíza no entendimento de que todas as coisas existem, se desenvolvem e se estabelecem dentro de uma narrativa universal. Essa narrativa tem início com Deus que cria todas as coisas, inclusive o ser humano para com ele se relacionar; o pecado humano que o separa de Deus, corrompe todas as coisas e leva à morte; o amor divino que busca o perdido e o redime por meio do sacrifício de Jesus Cristo que, na cruz, pagou o impensável preço para que todo aquele que crê tenha vida; e a igreja de Cristo com a missão de viver e partilhar sua fé no mundo até o fim, quando Deus julgará tudo e todos.

Ambos segmentos se aproximam dos fatos com seus pressupostos, sejam científicos ou não científicos, religiosos, pessoais ou intuitivos.

Minha intenção é refletir sobre o papel do antropólogo cristão que, com sua cosmovisão construída a partir da fé, interage com as áreas do saber e da profissão. Por antropólogo, me refiro a todo aquele que reflete cientificamente sobre o homem, sociedade e cultura na busca intencional do conhecimento, compreensão, relacionamento e serviço.

As bases de pesquisa e reflexão da antropologia são as mais diversas, sofrendo constante evolução por meio do desenvolvimento e teste de teorias, posicionamentos acadêmicos, provocações empíricas e toda sorte de continuada interação do homem com o próprio homem, em cultura, ao longo da história. Dentre os mais variados focos, que se expandem a cada dia, a antropologia pode ser dividida em física, cultural, arqueológica e linguística, abrangendo as mais diversas áreas de interação do homem com o homem, formando sociedades.

O cristão tem sua identidade definida em Cristo, no qual crê e ao qual ama e segue. Assim, sua cosmovisão cristã permeia e define a forma como enxerga o mundo e a forma como se enxerga nesse mundo, reconhecendo a autoridade das Escrituras Sagradas.

Encontra-se nesse ponto a base da recorrente tensão entre a ciência e a fé, pois a mensagem de Cristo não é paralela ou seletiva, mas integrada. Assim, não caminha de forma paralela ao saber humano, nem interage apenas com algumas partes da existência de forma seletiva, mas ressignifica toda a história, o conhecimento e a experiência humana a partir das lentes da revelação de Deus nas Escrituras Sagradas.

Uma fé plenamente integrada, não paralela ou seletiva, constrói no cristão uma visão particular de mundo. Parafraseando C. S. Lewis, se a fé cristã for falsa, não passa de mais uma crença; se for verdadeira, provê novo significado a todas as coisas[1]. Sendo Cristo Deus, e tendo ele ressuscitado, como creio, todas as coisas do universo passam a ter um significado diferente.

Paul Hiebert, possivelmente o maior antropólogo cristão de nossa geração, propõe que a verdade cristã transforma o ser humano envolvendo três dimensões: suas convicções, seu comportamento e sua cosmovisão. A verdade do evangelho transforma a maneira como se crê, a maneira como se comporta e a forma de enxergar o mundo ao redor, bem como enxergar-se nesse mundo[2].

Assim, a fé cristã toca, transforma e dá novo significado ao ser humano de forma integral, envolvendo também a maneira como esse busca, assimila e desenvolve o conhecimento. Um simples exemplo é a percepção da natureza, um ponto fundamental na busca e compreensão dos fatos sociais. O evolucionista clássico tende a ver a natureza como resultado do acaso que, de uma forma coincidentemente lógica, conseguiu se organizar e gerar o universo, o ser humano e as condições para sua subsistência. O cristão enxerga a natureza como uma manifestação intencional e pessoal de Deus, sua revelação, amor e propósito na existência da humanidade. Essa distinta percepção em um ponto fundamental promove, fatalmente, diferentes interpretações dos fatos e aplicações do conhecimento[3].

A antropologia, porém, deve ser uma das áreas do conhecimento mais abertas a diferentes interpretações e pressupostos, inclusive aqueles relativos à fé, uma vez que foi talhada para buscar a compreensão do ser humano em suas mais divergentes e diferentes organizações, relações e crenças. A antropologia, que leva em consideração a importância da fé nas sociedades investigadas, deve também reconhecer a sua real influência no investigador.

Creio que os três principais cenários onde o antropólogo cristão exerce suas atividades são a sociedade, a academia e a igreja.

O papel do antropólogo cristão na sociedade pode ser conceituado a partir da sua dimensão e intenção. A dimensão se estabelece em relação à sua identidade, enquanto a intenção o remete à sua missão. Antes de seguir, porém, devo mencionar que, ao referir-me aos cristãos, tenho em mente um recorte específico: aqueles que creem e abraçam (1) as Escrituras Sagradas como fonte de revelação da verdade comunicada por Deus ao homem; (2) o sacrifício de Cristo, movido pela graça de Deus, redimindo o ser humano pela fé e o transformando em nova criatura; e (3) a igreja, reunião dos redimidos em Cristo, tendo como missão interagir e abençoar a sociedade humana com seu testemunho de vida e proclamação da mensagem da cruz.

De certa forma, o antropólogo define sua área de conhecimento e profissão a partir da sociedade, suas demandas, carências e oportunidades. Assim, ele ou ela percorre o saber humano em busca do conhecimento necessário, axiomático ou empírico, tradicional ou contemporâneo, que produza um serviço para que a sociedade enxergue a si, ou a outros, de forma mais clara, seja sobre uma perspectiva panorâmica ou particular. Provê, portanto, elementos para que o ser humano perceba melhor aquilo que observa, em busca de compreensão.

O antropólogo cristão (ou cristão, que é antropólogo) possui a mesma dimensão, em busca de conhecimento e serviço, porém exerce o saber debaixo da fundamental crença na providência de Deus. Sua interação com essa, ou qualquer outras área de conhecimento, não se dá por meio dos pressupostos evolucionistas, em que a existência resulta de um acaso coincidente; ou fatalistas, quando se descarta o controlador poder divino e pessoal; mas pela providência de Deus na criação, na redenção e na relação com o mundo.

Voltando à roda de universitários em São Paulo, pediram-me um exemplo de atitude de um antropólogo cristão. Veio à minha mente um serviço prestado em uma comunidade africana, de Gana, noroeste africano, anos atrás.

Tratava-se de uma comunidade da etnia Konkomba-Bimonkpeln que enfrentava um conflito de relacionamento entre dois clãs que partilhavam o espaço e a história ao longo de um século e meio. Discutindo sobre as possíveis alternativas, cada grupo clamava para si o direito à terra e pedia que o outro se retirasse. A animosidade crescia, sobretudo entre os mais jovens. Consultaram um antropólogo, que era cristão, pedindo um estudo sobre a participação de cada grupo na gênese da comunidade, claramente em busca das questões de direito. O antropólogo colocou-se a trabalhar, pesquisando e interagindo com ambos os grupos em uma tarefa etnográfica. Ao fim do processo apresentou os resultados, de maneira formal e oral, em uma reunião conjunta, qualificando a participação dos ancestrais na construção daquela sociedade e valorizando o papel complementar de cada clã. Apesar do resultado da pesquisa apontar para papéis mais ou menos igualitários na formação da comunidade, a intenção de divisão era clara e um grupo viu-se em condições de impor ao outro a retirada. O antropólogo, porém, pedindo oportunidade para continuar, explorou um dos elementos socioculturais fundamentais no surgimento e primeiras décadas daquela comunidade: a tolerância. Expôs que, em seus achados, o nível de tolerância, inclusive linguística (visto que falavam dialetos distintos) e cultural (possuíam padrões de casamento distintos, entre outras questões) foi um elemento que tornou viável a convivência. Houve um momento de elucidação seguido de alguns comentários que interpretavam o assunto em pauta, mas logo passaram a novamente tratar do motivo central do encontro, que era o direito à terra e a retirada do grupo de menor influência.

O antropólogo, pedindo para continuar, afirmou que havia algo mais a ser falado: que como cristão entendia que, acima das relações humanas e das relações do ser humano com a natureza, há Deus. E que Deus, encarnado em Cristo Jesus, veio para promover reconciliação entre o homem e Deus e entre o homem e o homem, resumindo todos os mandamentos em dois: amar a Deus acima de todas as coisa e amar ao próximo como a si mesmo. Havia alguns poucos cristãos naquela comunidade, em ambos os clãs. Iniciou-se por meio desses uma reflexão sobre a possibilidade de resolverem os conflitos, pois o amor era maior que a tolerância. Entre os não cristãos, maioria, alguns também viram motivo suficiente para refletir um pouco mais e agendaram novos encontros. O antropólogo se retirou e o assunto foi levantado diversas outras vezes ao longo de vários meses por ambos os grupos. Finalmente concluíram que poderiam solucionar os conflitos e, se viessem a se dividir, o fariam em paz para conviver como vizinhos de forma tolerante, como ocorreu no passado, ou mesmo amorosa, um possível novo passo.

O fim da história foi feliz, tanto na percepção do grupo quanto do antropólogo, porém o destaque que faço não remete ao resultado, mas ao processo. O antropólogo utilizou do conhecimento e do procedimento adequado, na medida que lhe foi solicitado o estudo e intervenção, procurando ser fiel aos achados históricos, culturais e relacionais, identificando um elemento central (a tolerância) na própria tradição do grupo que poderia ou não ser usado pelas partes. E, como cristão, apresentou sua interpretação, dentro do espaço oferecido e permitido, quanto à providência de Deus.

Parece-me, assim, que o papel do antropólogo cristão na sociedade é percorrer o caminho da busca pelo conhecimento de forma a servir o ser humano provendo mais clareza na visão que ele tem de si mesmo e na visão e relação com os outros. E observar os achados promovidos pelas ciências sociais, e demais ciências, interpretando-os como parte de uma narrativa maior, revelada por Deus, envolvendo fatos, verdades e princípios. Em sua postura, em tudo servir, jamais impor; sempre participar, jamais controlar.

Quanto à academia, entendo que o papel do antropólogo cristão é de integridade, relacionamento e competência. Passa pela evolução do conhecimento pessoal na relação com a comunidade científica, toda a sua história e tradição, bem como suas pesquisas atuais e projeções; e também abrange sua contribuição no desenvolvimento do saber a partir do estudo e da própria fé, elemento esse indivisível de sua identidade e cosmovisão. Essa conciliação (o saber e a fé), as vezes estranho aos que transitam nos limites, ou seja, os que desprezam o conhecimento ou os que não possuem a fé é, de fato, viável e relevante.

Nessa linha, é apropriado destacar também o papel do missionário cristão no desenvolvimento do saber antropológico. Segundo Taber[4] a primeira interação explícita entre missionários e antropólogos ocorreu em 1860 quando missionários passaram a servir como pesquisadores de campo para antropólogos que se dedicavam ao ambiente acadêmico. Darrell Whiteman nos diz que antropólogos como Tylor e Morgan, dentre muitos outros, utilizaram a força missionária mundial como seus pesquisadores de campo[5].

Em seu livro Anthropology’s Debt to Missionaries, os autores destacam a expressiva contribuição das pesquisas e experiências interculturais missionárias ao longo de mais de três séculos para a construção da etnografia e moderna antropologia, e destacam que isto ocorria em uma época quando ainda não existia o ambiente de rivalidade entre os segmentos[6].

Na publicação The Slain God: Anthropologists and the Christian Faith, o autor destaca o papel de alguns antropólogos cristãos no ambiente científico, sobretudo estudos de Edward Evans-Pritchard, Mary Douglas e Victor Turner em que a influência do pensamento cristão se faz presente em clássicos com Os Nuer, Pureza e Perigo e O Processo Ritual, dentre outros[7].

De certa forma, o papel do antropólogo cristão na academia é de participação na história e tradição da busca do saber no ambiente das ciências sociais, crescendo como indivíduo e parte da comunidade acadêmica; de desenvolvimento científico por meio do aprendizado que lança luz à vivência da igreja e dos cristãos, sobretudo na relação com a sociedade, seu pensamento e cosmovisão; e, por fim, por meio da contribuição, a partir das oportunidades, talentos, propostas e descobertas, com profundo respeito ao conhecimento científico, do qual se aproxima e interage a partir das lentes cristãs.

Pensando na igreja, o papel do antropólogo cristão é multiforme. Em primeiro lugar, o de colaborar para que a igreja entenda a cosmovisão da presente sociedade e com ela se relacione e comunique de maneira inteligível e aplicável. Em segundo lugar, em uma variedade de estudos e reflexões que envolvem critérios de relacionamento local e intercultural, pesquisa urbana e sociocultural, padrões de comunicação e tudo o que envolve o homem, seu contexto e cultura. E em terceiro lugar, em ambientes missionários locais e transculturais, com o treinamento adequado para o trabalho de relacionamento e comunicação do evangelho, bem como desenvolvimento dos elementos eclesiásticos em uma outra cultura ou contexto. Há nessas trilhas uma ampla diversidade de áreas e aplicações.

As Escrituras Sagradas respondem às perguntas humanas, portanto o cristão ali encontra suas respostas. As perguntas universais são também conhecidas, entretanto a forma particular como se manifestam diverge a cada geração, língua e cultura. Assim, as ciências linguísticas e sociais colaboram na identificação das mesmas. As Escrituras Sagradas, por exemplo, condenam a sensualidade, mas o que é sensual se expressa de forma mais específica a cada geração, ambiente e cultura. Uma roupa considerada provocante na geração de nossos avós, por exemplo, pode ser vista como conservadora para nossos filhos. Portanto, é na identificação das perguntas a serem respondidas, a observação e compreensão do contexto, que a antropologia também serve à igreja cristã. Pelo despreocupar-se com a contextualização frequentemente encontramos templos de cimento para culturas de barro, pianos de calda para povos de tambores, terno e gravata para os de túnica e turbante, sermões lineares para pensamentos cíclicos, sapatos engraxados para pés descalços.

Recentemente foi-me solicitado um estudo sobre a percepção que a sociedade pós moderna, pluralista e mística não cristã tem quanto às verdades cristãs. O resultado do estudo constatou graves mudanças na sociedade brasileira, sobretudo urbana, nas últimas quatro décadas em relação à maneira de enxergar a Bíblia, o pecado e a Cristo. Passou-se a rejeitar a Bíblia como um livro autoritativo, desconsiderar o pecado como erro espiritual ou cultural (sendo aceito apenas como erro moral), e rejeitar a singularidade de Cristo. Nesse último quesito, a pesquisa constatou que os não cristãos não rejeitam Cristo, mas sim sua singularidade. É bem visto abraçar a Cristo como um caminho, mas não como o único caminho. A investigação indicou também que em algumas grandes universidades brasileiras já encontramos um ambiente próximo ao pós-cristão que demanda uma abordagem mais apologética no exercício da partilha da fé. Em um segundo momento, com a conclusão do estudo em mãos, líderes de algumas igrejas concluíram que em processos de evangelização deveriam usar mais diretamente a Bíblia, apresentar de forma mais clara o conceito bíblico do pecado e anunciar enfaticamente a singularidade de Cristo. Esse exemplo indica, para a igreja, a possibilidade de uso das ciências sociais com a finalidade de cooperar com o cumprimento da sua missão: comunicar a mensagem do evangelho de forma teologicamente fiel e, ao mesmo tempo, culturalmente inteligível e aplicável.

Assim, em uma visão panorâmica, o antropólogo cristão transita pelas áreas da busca do conhecimento a partir da histórica construção humana dentro dos fundamentais critérios de sua fé, interagindo com a sociedade, academia e igreja como alguém que colabora para o entendimento do homem em cultura, sua relação com o outro e sua relação com Deus. Isso faz parte de sua identidade e também de sua missão.

 

*Ronaldo Lidório é teólogo e antropólogo, servindo como missionário (APMT/WEC) entre grupos minoritários e fundador do Instituto Antropos.

 

[1] Lewis, Clive. God in the dock: Essays on Theology and Ethics. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co, 1972.

[2] Hiebert, Paul. Transformando cosmovisões. São Paulo: Vida Nova, 2016.

[3] Lidorio, Ronaldo. Introdução à antropologia missionária. São Paulo: Vida Nova, 2014.

[4] Taber, Charles. To understand the world, to save the world: the interface between missiology and social science. Harrisburg: Trinity Press International, 2000.

[5] Witheman, Darrell. “Part 1: Anthropology and mission: the incarnational connection”, International Journal of Frontier Missions 21.1 (2003).

[6] Brown, Paula; Plotnicov, Leonard; Sutlive, Vinson. Anthropology’s debt to missionaries. Pittsburg: University of Pittsburg, 2007.

[7] Larsen, Timothy. The slain God: anthropologists and the Christian faith. Oxford: Oxford University Press, 2016.

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