O Evangelho e a aculturação indígena
É a evangelização indígena, realizada por movimentos cristão evangélicos, um dos fortes fatores para a aculturação do índio e sua consequente perda de identidade ?
Esta pergunta me foi feita algumas vezes nos últimos anos.Demonstra por um lado a legítima preocupação com a preservação da identidade cultural indígena, e por outro a ausência de maior informação quanto à raíz do movimento missionário evangélico que, quanto à culturalidade, é preservacionista.
Pensemos um pouco sobre esta questão. A aculturação é um processo de molde social imposto por uma sociedade distinta, que pode ser objetiva (imposição aberta, colonialista) ou subjetiva (imposição baseada na atração e conseqüente desvalorização do sistema cultural materno) sendo ambas igualmente danosas.
No presente, entre os indígenas brasileiros, a aculturação ao universo ”branco” se dá por três pólos de atração: educação, saúde e comércio. No passado, especialmente, a catequese católica seria listada como um dos fortes pólos de atração. Movimentos indigenistas possuem iniciativas a fim de prover, desta forma, educação, saúde e subsistência aos indígenas sem que os mesmos saiam de seus territórios e, conseqüentemente, sejam envolvidos pela cultura absorvente. Portanto a permanência ou não em sua ”homeland” – território natal – pode ser vista como vital para a preservação cultural.
Tenho observado que as perdas culturais mais profundas, e irrefreáveis vêm acompanhadas da perda do território e sucessiva troca por outro onde a expressão grupal possui diferentes códigos e, em geral, o estranho passa por um processo que vai da discriminação social até a marginalização. Torna-se, assim, preocupante verificarmos a crescente urbanização indígena onde, atualmente, cerca de 50% da população indígena do país encontra-se fora dos aldeamentos.
A iniciativa missionária evangélica vem cercada por estes cuidados culturais através da defesa do território. Através da análise lingüística e valorização da cidadania indígena dentro da escala cultural nacional (inter-etnica) se promove um menor esvaziamento do território natal indígena. A SIL, por exemplo, é sem dúvida uma entidade colaboradora para a permanência indígena em seu território natal através de seu esforço de não apenas grafar as línguas indígenas mas facilitar a produção de material lingüístico local que venha a saciar a sede do índio pelo registro, produção literária e transmissão de conhecimento em um nível mais amplo. Por si, esta iniciativa preservacionista já possui uma expressiva contribuição para se evitar o esvaziamento de aldeias e territórios tradicionais.
De igual forma as atividades sociais (médicas, de educação e subsistência) quando desenvolvidas por entidades missionárias evangélicas são, via de regra, baseadas na própria lingua/cultura/território indígena, sendo que as mesmas se enraízam junto a etnias específicas, de forma menos móvel e mais permanente, o que também contribui para a permanência territorial e preservação da cultura.
Além dos registros lingúisticos com empoderamento para produção literária, e dos diversos projetos sociais que dignificam o índio e colabora para a manutenção de seu enraizamento territorial, podemos ver a iniciativa missionária evangélica como promotora da permanência territorial através da apresentação dos direitos humanos universais ao povo indígena. Através do conhecimento dos direitos humanos (do índio em relação ao índio e do índio em relação ao não índio) percebemos positivas e fortes manifestações em defesa do próprio modo de pensar, viver e agir. Esta apresentação dos direitos humanos produz também uma luta pela defesa do respeito às escolhas do índio, o que faz com que este possa se manifestar livremente para dizer sim ou não a qualquer prática que julgue relevante avaliar, seja indígena ou não indígena. A tendência de algumas linhas antropológicas de engessar o índio à sua própria história não lhe dando a permissão de revisar sua vida e costumes (bem como fazer escolhas que julgue necessárias) como, por exemplo, fazer cessar o infanticídio, devem ser questionadas.
Tendo em mente este cenário podemos pensar no ponto de maior controvérsia quando se trata da atuação missionária, que é a exposição do evangelho ao índio. A controvérsia se enraíza nos pressupostos que a teologia e antropologia possuem em relação ao evangelho. Se por um lado a antropologia clássica o vê como um elemento de literatura religiosa especificamente cristã, e promotor de uma cultura cristã (no presente) ocidentalizada; por outro lado os cristãos vêem o evangelho como uma palavra inspirada por Deus e transmitida aos homens, a todos os homens, de forma a-temporal, ou seja, com a capacidade de comunicar a verdade de Deus a todos os homens em todas as culturas e em todos os tempos. São, desta forma, verdades universais. A forma de transmiti-lo, de maneira inteligível e com padrões culturais de compreensão, chama-se contextualização.
Portanto, dentro do pressuposto cristão o evangelho não acultura o indígena mas vem lhe trazer a verdade universal em sua própria língua e cultura. Igrejas indígenas evangélicas autóctones como os Wai-Wai são um bom exemplo de como o indígena convertido e seguidor de Jesus continua sendo índio, com sua língua, sua cultura e sua compreensão da vida. A conversão interior, porém, provoca efeitos visíveis na interpretação desta vida e escolhas diárias e reside aí, creio eu, a raíz das maiores controvérsias quanto à evangelização indígena. Estas surgem quando o índio, convertido, passa a revisar a vida e evitar, por exemplo, a participação em ritos e atos normalmente admissíveis e vividos em seu povo até então. Seria o caso, por exemplo, de um indígena que descobre o adultério da esposa e, ao contrário da tradição histórica, resolve não matá-la, mas sim perdoá-la. Seria o outro que passa a amar seus inimigos (talvez patrões injustos, exploradores) ao invés de roubá-los e amaldiçoá-los. Seria ainda a mãe que resolve manter sua filhinha viva, ainda que enferma, em lugar de envenená-la como seria o esperado pelo grupo. Ou ainda o rapaz que não toma mais caxiri, o ancião que passa a ver na pajelança elementos ruins para sua vida, a criança que perde o medo do espírito que produz o trovão e assim por diante. Estas mudanças de vida, que geram alterações na própria cosmovisão, são causadoras de desconforto no mundo acadêmico não cristão.
Antes de prosseguirmos façamos, porém, uma diferença entre cultura e história. Quando se afirma que o indígena passa a não praticar certas atividades culturais, o que se quer dizer é que este indígena escolheu não praticar certas atividades históricas, visto que todas as atividades da vida humana em uma certa sociedade, incluindo suas escolhas, são atividades culturais. Nenhuma cultura é estática. A isenção da participação em alguns atos e cenários tradicionais não pode ser percebida como um processo de aculturação, mas sim como uma escolha de postura de vida dentro do seu universo local e com base em sua crença, ou fé. O rio Içana, por exemplo, cristão e evangélico, é conhecido como o rio onde ”não se bebe”. Afirmar que é ”cultural” beber, como frequentemente ouvimos, na verdade deveria ser melhor referido como sendo ´histórico´ beber, seja o caxiri ou cachaça. O fato de vários indígenas do Içana não beberem o caxiri ou a cachaça não deve ser visto como um rompimento cultural, ou aculturação, por um motivo: beber é cultural da mesma forma que qualquer outra atividade praticada na sociedade como pescar, caçar, casar, adulterar, trair, matar, brincar etc. O fato de uma atividade social ser ”cultural” sugere apenas que possui raízes de compreensão e prática naquele grupo.
Nesta secular controvérsia sobre a presença missionária evangélica entre os índios, a fim de tratarmos os indígenas como moralmente iguais precisaríamos pressupor menos suas escolhas e ouvi-los mais. Outro dia, viajando pelo Alto Rio Negro, ouvi um indígena dizendo: você pode me falar de Jesus ? Daríamos a qualquer um, neste Brasil, o direito de ouvir do que deseja ouvir. Porque não ao índio ?