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Conceituando os Mitos

Um aspecto muito valorizado na fenomenologia é o mito. Numa breve conceituação devemos dizer que o mesmo se distingue da história não por critérios de veracidade mas sim de forma. Não se refere, portanto, a uma historia contada mas sim a uma historia vivida. Nas palavras de Malinowski “é uma realidade viva, que se crê ter acontecido em tempos recuados e que continua a influenciar o mundo e os destinos humanos”.[1] Vemos, portanto, que o mito é de fato uma força cultural e de implicações sociais. Porém não é um elemento estático em sua cultura. Malinowski mais uma vez pontua que “o mito… é constantemente recriado; cada mudança histórica gera a sua mitologia, que, no entanto, apenas se relaciona indiretamente com o fato histórico. O mito é um constante derivado da fé viva, que carece de milagres; de estudo sociológico, que exige antecedentes; de norma moral, que requer sanção”. [2]

 

Ele, assim, nos apresenta a uma tese provável. Observo que a religiosidade de um povo, especialmente animista, é dinâmica e baseada sobretudo em sua mitologia. Porém pergunto-me, algumas vezes, se os mitos fundamentam a religiosidade ou se a religiosidade gerou os mitos. De certa forma mito e magia compartilham o mesmo valor utilitário. Enquanto a primeira se propõe a ser uma prática de manipulação da vida o segundo fundamenta as idéias, conceitos e crenças para que a vida faça sentido, sobretudo a religiosidade. As explicações da vida, da existência, dos poderes que regem o mundo, das enfermidades, certezas e incertezas, a dubialidade do universo, tudo pode ser encontrado, seus valores, na mitologia de um grupo quando a mesma é preservada e transmitida.

 

Minha observação, sobretudo dos Konkombas de Gana, leva-me a pensar que há uma modulação entre o perfil étnico e a mitologia presente. Ou seja, a forma tradicional ou progressista, ética ou a-ética, mágica ou espiritualista, teófana ou naturalista, de um grupo coincide com os elementos em sua mitologia que fundamentam não apenas suas crenças mas seu perfil etno-social desde o agrupamento até a solução para os conflitos da vida. Sendo a mitologia dinâmica, possivelmente os representantes de um grupo com clara fundamentação em sua mitologia, não apenas se utilizaram dos mitos existentes mas criaram e recriaram estes e novos mitos a fim de que se encaixassem no perfil do povo e suprisse a sua expectativa. Desta forma a mitologia não é apenas fundante mas também manipulada. Não ocorre de forma intencional coletiva mas fragmentada e individualizada. Portanto os mitos podem guardar não apenas as explicações da vida mas, em alguns casos, são um resultado fabricados da própria vida.

 

Entre os Konkombas de Gana a mitologia que contorna o personagem Uwumbor é enigmática ao falar sobre um ser que criou e se distanciou, que observou o pecado do ‘ukpakpalja’ – homem ganancioso – e se revoltou levando consigo o ‘paacham’ – paraíso. Porém a mitologia também afirma que Uwumbor, desde os tempos recuados, desceu à terra mais duas vezes, ambas para punir o povo pelo crescimento de seu mal. Esta crença mitológica coincide, porém, com uma epidemia que teria devastado boa parte da etnia Konkomba-Bimonkpeln em 1870 e a guerra contra os senhores da terra (Gonjas e Dagombas) em 1942 (que se repetiu em 1993 e 1997). Especialmente em 1942 muitos Konkombas foram mortos, especialmente representantes dos principais clãs. Da mesma forma que percebemos, portanto, que a mitologia de Uwumbor e ukpakpalja remonta a um tempo antigo, no passado recuado, que patrocinou crenças e convições a partir de um deus distante e espíritos presentes, levando-os a toda sorte de atos de invocação, adoração e temor, percebemos por outro lado o elemento utilitário, e possivelmente produzido de forma intencional, do retorno de Uwumbor para explicar os fatos da vida, no caso a epidemia e a guerra perdida. Assim os mitos funcionam como interlocutores em grupos com enraizada tradição oral, e interagem com a vida explicando-a e sendo moldado para explicá-la.

 

Mitos, então, são narrativas de idéias mais antigas. Ao passo que novos mitos podem ser criados, os mais antigos influenciam mais a comunidade. Algumas categorias de mito podem devem ser observadas neste momento.

 

Mitos de cosmogonias, que relatam sistemas e momentos de origem do universo e homem pelo deus, deuses ou força geradora de vida. Estes mitos nos ajudam na teologia da criação. Os mitos de cosmogonias são presentes sobretudo em culturas tradicionais, históricas e teófanas e, sobretudo espiritualistas apesar de também serem encontrados em agrupamentos mágicos. Normalmente agrupamentos totêmicos possuem vasta preservação dos mitos de cosmogonias visto que ali estão enraizadas parte da lógica totêmica que compõe um grupo ou clã.

 

Mitos de antropogonias, que relatam a criação do ambiente de vida do homem como animais, plantas e ar. Também nos ajudariam nas teologias da criação.

 

Mitos antigos, que relatam períodos marcantes após a criação. Entre os aborígines da Austrália é chamado de ‘tempo dos sonhos’. Entre os Bassaris do Togo são ‘as árvores que contam a história’. Trata-se aqui de mitos e lendas que falam do tempo em que deus e homem conversavam, os primeiros traidores, os primeiros heróis, o crime mais hediondo, os nomes que viriam a ser, depois, os famosos ancestrais, o inicio dos clãs e grupos, divisão de línguas, dispersão social e outros aspectos que nos ajudam, estes antigos, na teologia da queda.

 

Mitos de metamorfose, que relatam eventos marcantes repensáveis por mudanças da forma ‘antiga’ do mundo e o tornaram como é hoje. Relembremos que entre os Konkombas há aquele mito que relatei atrás do homem ganancioso, primeiro criado por Uwumbor, que subia na copa da arvore a cada fim de dia para cortar um bom pedaço de carne do céu azul, que é cheio de carne e era bem baixo o suficiente. Sua ordem era retirar apenas o necessário para o dia. Entretanto, desconfiando de Uwumbor, certo dia o ‘ukpakpalja’ cortou carne para muitos e muitos dias e a escondeu. No dia seguinte esta veio a apodrecer, causando grande desilusão a Uwumbor que se distanciou e levou consigo o céu, Pacham, para bem longe, ao alto, inatingível. Este tipo de mitos nos ajuda na teologia da união com Deus e na expectativa da proximidade com Deus, como temos na teologia da reconciliação.

 

Mitos de seres espirituais, que relatam os personagens invisíveis, seus nomes, feitos, origem, história. Nos ajudam a definir o mundo do além e o mundo do aquém.

 

Mitos naturais, que relatam e explicam muitas vezes, fatos naturais como chuva, raios, trovão, o curso dos rios e sistemas afins. Podem nos ajudar, a partir do extrato de suas explicações, a explicarmos o Evangelho.

 

Mitos messiânicos, os quais relatam personagens ou forças que trazem salvação ao povo. Antropólogos tendem a crer que são raros, porém tais mitos ocorrem, não objetivamente, em diversas culturas. Para os Tariana o mito de “Keeteh” pode representar messianismo quando relata a luz que, ao fim, brilhará e jogará longe a tristeza do povo Tária. Para os Konkombas de Gana o ‘mantotiib’, pacto de amizade entre famílias outrora inimigas, apontava para um que faria o ‘mantotiib’ entre Deus e os homens. Para os Chakalis, o quebrar de uma cabaça significa perdão. Cantigas louvam ‘aquele’ que quebrará a grande cabaça onde se encontram todas as maldades dos Chakalis. São mitos messiânicos e ajudam na teologia da redenção.

 

Independentemente das divergências antropológicas , se os mitos geram idéias ou o contrário, são as idéias que nos interessam, não importa tanto sua gênese. A história é uma narrativa verídica comprovada e o mito necessita de fé, é uma narrativa experimentada.

[1] Malinowski, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições 70, 1988.

[2] idem

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