MISSIOLOGIA TEOCÊNTRICA E TRINITÁRIA
Observando a missiologia de Gisbertus Voetius e suas aplicações para os nossos dias
Ronaldo Lidório
Gisbertus Voetius é considerado o primeiro teólogo pós reforma a sistematizar a teologia da missão, sendo reconhecimento como primeiro missiólogo protestante. Teólogo holandês calvinista do século 17, Voetius desenvolveu um profundo estudo da teologia da missão e especializou-se no assunto da evangelização transcultural e plantio de igrejas. Levantou também a bandeira da piedade cristã aplicada à vida, família e missão. Assim, seu legado de teologia, piedade e missão influenciou gerações e ainda fala em nossos dias. Voetius permanece pouco conhecido, em parte porquê os seus livros, escritos em Latim, permanecem em sua maioria não traduzidos. Sua influência na missiologia global, porém, é tremenda, pois diversos utilizaram seus escritos, reflexões e legado para o desenvolvimento teológico e prático da missão, como Abraham Kuyper, Johan Herman Bavinck, Johannes Verkuyl e William Carey, e por ter lançado os alicerces para diversos conceitos fundamentais da missão, como a missio Dei, a centralidade do evangelho na missão, a eclesiologia missionária e muito mais.
Missiologia Teocêntrica e Trinitária
Para Voetius, Deus não é apenas o centro do universo e da igreja, mas também da própria teologia. A centralidade e singularidade de Deus são fundamentos sobre os quais toda a revelação deve ser compreendida. A redenção, o grande plano de Deus para a salvação daqueles a quem Ele chama, deve ser compreendida a partir do próprio Deus, seus decretos e desejos, e não a partir do homem, seus anseios e cultura.
Ele dizia que a Trindade era o fundamento dos fundamentos da fé cristã. A missão, no entender de Voetius, portanto, é trinitária, movida pelo amor do Pai, pela obediência do Filho e pelo poder do Espírito Santo – a Trindade em missão, a missio Dei Trinitatis; utilizando o conceito original de missio Dei proposto por Agostinho no século 4. Nessa perspectiva, o Deus Triúno promove a missão para a redenção do seu próprio povo e glória do seu próprio Nome. E a missão da igreja é sair pelo mundo proclamando o que o Deus Triúno está fazendo.
Essa redenção, na percepção de Voetius, se dá a partir do chamado de Deus. Ele afirma que “o chamado é aquele benefício pelo qual Deus apresenta e oferece os instrumentos da aliança; e a regeneração torna uma pessoa adequada para participar deles”.
Ele entendia que a teologia deveria estar enraizada na graça, que promove toda a ação de eleição, chamado e conversão dos perdidos por meio do amor e justiça de Deus, o sacrifício de Cristo e a ação do Espírito Santo, gerando plena redenção dos perdidos, para a glória do próprio Deus. Assim, o evangelho deve ser compreendido como a mensagem de salvação apresentada por Deus e proclamada pela igreja, tendo como centro a nova aliança no Novo Testamento.
Ele defendeu que toda teologia deveria também estar enraizada na fé, entendendo que a fé se baseia no conhecimento intelectual da verdade, concordância de coração com a verdade e completa crença na verdade. Enfatizava que a teologia sem fé estaria morta e a fé sem teologia se perderia. Para ele, a fé é tanto racional quanto emocional, envolvendo tanto a razão quanto as emoções, desembocando em plena convicção. E a fé, sendo a crença no invisível, devia tornar-se visível por meio da manifestação de vidas transformadas, o que ele chamava de piedade. Assim, a igreja deveria ser reformada não apenas em sua doutrina, mas também em sua piedade.
Os quatro fundamentos
Em minha compreensão, a teologia da missão de Voetius nasceu a partir de alguns fundamentos, e destaco quatro. O primeiro era o seu próprio entendimento de que toda teologia deveria ser prática, ou seja, praticada. Dessa forma, todo o conhecimento de Deus revelado em sua Palavra teria como alvo a prática desse conhecimento para a piedade, a missão e a glória do Senhor. Esse fundamento foi de vital importância em sua teologia, vida pastoral e envolvimento missionário. Na perspectiva de Voetius (que foi diretor e professor de teologia por mais de 4 décadas, além de pastor de uma igreja local e mobilizador missionário), a teologia restrita ao gabinete do teólogo é uma incoerência, uma vez que, em sua essência, a teologia é prática, tendo sido revelada por Deus para ser apresentada à igreja e ao mundo. Chamava, assim, a teologia prática de teologia praticada.
O segundo fundamento foi sua compreensão teológica dos decretos de Deus, predestinando e chamando para si, por meio da redenção em Cristo Jesus, pessoas de todas as nações. Para Voetius, a predestinação é a prova doutrinária de que a missão tem origem em Deus, é realizada por Deus e desemboca na glória de Deus. Nessa trilha, compreendia que a crença na soberania de Deus, predestinando e chamando, deveria ser uma profunda motivação para a evangelização. À medida que a igreja cresse que é Deus quem chama, ela proclamaria com maior vivacidade e paz a mensagem do evangelho em toda a terra. Voetius influenciou o Sínodo de Dort em diversos aspectos, tornando os cânones de Dort também uma magnífica carta missiológica. O Capítulo 2, artigo 5, é chamado por alguns de a Carta magna das missões, onde lemos:
“A promessa do evangelho é que todo aquele que crê no Cristo crucificado não pereça, mas tenha vida eterna. Essa promessa deve ser anunciada e proclamada sem discriminação a todos os povos e a todos os homens, aos quais Deus em seu bom propósito envia o evangelho, com a ordem de se arrependerem e crerem”
O terceiro fundamento seria a natureza de sua eclesiologia, compreendendo a igreja como vocatio et missio (chamada e enviada) ao mesmo tempo, não dissociando essas duas verdades. Ele cria que a igreja era chamada por Deus em Cristo Jesus para a salvação, e enviada por Deus em Cristo Jesus para a missão. Esse entendimento foi demonstrado em suas publicações e também estilo de vida e ministério, conjugando a edificação da Palavra com a proclamação do evangelho. Seu ensino acadêmico na universidade e suas pregações bíblicas na igreja caminhavam lado a lado com seus esforços diários de apologia e evangelização dos ateus, católicos romanos, judeus e islâmicos.
E, por fim, a convicção de que a finalidade de todas as coisas é a glória de Deus e que Deus é também glorificado quando perdidos se convertem, são redimidos e inseridos na igreja de Cristo. Voetius aplicou o conceito reformado da soli Deo gloria na missão – a motivação maior e mais profunda para proclamarmos o evangelho é a glória de Deus. Esse último fundamento foi o estopim para o seu interesse em abordar a eclesiologia em uma perspectiva prática, sobretudo o plantio e fortalecimento espiritual de igrejas locais. Ele chegou a dedicar alguns capítulos de sua obra teológica mais importante para o De Plantatione Ecclesiarum, ou Sobre o Plantio de Igrejas. E ali, ele levantava no século 17 perguntas que ainda hoje levantamos em nosso trabalho missionário. Por exemplo: em que medida uma igreja filha deve estar ligada à igreja mãe, e em que medida deve ter autonomia? E responde: uma igreja filha deve ter autonomia na liderança, finanças e missão; e deve permanecer ligada na comunhão e na doutrina.
Esses quatro fundamentos, dentre outros, levou Voetius a desenvolver a sua missiologia. Houve, porém, uma forte influência do contexto. Durante o seu tempo diversas terras e povos passaram a ser conhecidos e Voetius se posicionou promovendo a convicção bíblica de que a igreja de Cristo possui responsabilidade perante os perdidos, todos os perdidos, passando a focar mais e mais na missão. Para tal, foi importante sua compreensão exegética e teológica sobre os gentios. Seu clamor era pela evangelização de todas as gentes, incluindo as populações nas recém conhecidas terras. Dessa forma, ele passou a focar cada vez mais nos não cristãos, tornando seu ministério profundamente missionário.
É certo que em sua eclesiologia missionária, Voetius possuía uma visão mais restrita, com foco puramente institucional e denominacional, não concebendo ou reconhecendo qualquer ação missionária que não fosse selada por um concílio denominacional. William Carey, cerca de um século depois, ampliou o conceito eclesiológico defendido por Voetius aplicando-o à igreja universal, onde todos os cristãos eram chamados para a obediência perante a grande comissão, abrindo portas para a criação e desenvolvimento de iniciativas missionárias especializadas, agências missionárias interdenominacionais e departamentos missionários nas denominações.
Convicção bíblica
É importante reconhecer que Voetius estava alicerçado nos fundamentos defendidos por alguns de seus antecessores. Antes dele, vários teólogos e pregadores reformados viam-se como missionários, proclamadores da mensagem do evangelho no mundo. Os fundamentos de Voetius, porém, não se alicerçavam apenas na observação da eclesiologia missionária dos reformadores, mas, sobretudo, na compreensão bíblica que esses possuíam.
Calvino, comentando Atos 1:8, expressa que os discípulos, tendo ouvido de Jesus que receberiam poder para serem testemunhas em Jerusalém, Judéia, Samaria e confins da terra, deveriam entender que “lhes foi entregue a missão do mundo inteiro, no qual toda a doutrina do evangelho deve ser proclamada”. Comentando Mateus 28:19, e compreendendo que a comissão dada aos apóstolos se estendia à toda a igreja, ele afirma que o Senhor removeu a distinção, “tornando os gentios iguais aos judeus, e recebendo ambos, sem reservas, na participação da aliança. É também importante a expressão: ide. Os profetas, debaixo da Lei, possuíam limites geográficos demarcados a eles, mas agora o muro de divisão foi quebrado, e o Senhor ordena que os ministros do evangelho vão para longe, com o objetivo de espalhar a doutrina da salvação em todas as partes do mundo”. E comentando Isaías 12:5, Calvino, falando sobre toda a igreja em todos os tempos, diz que “(…) é nossa obrigação proclamar a bondade de Deus para todas as nações; (…) a obra não pode ser escondida em um canto, mas proclamada em todos os lugares”.
De forma profundamente clara, relacionando a soberania de Deus com a evangelização, Calvino afirma que “(…) embora Deus seja capaz de realizar a obra secreta de seu Santo Espírito sem quaisquer meios ou assistência, ele também ordenou a pregação externa, para ser usada como um meio. Mas para torná-la um meio efetivo e frutífero, ele escreve com o seu próprio dedo em nossos corações aquelas palavras que ele fala aos nossos ouvidos pela boca de um ser humano. Assim, torna o seu trabalho espiritual e vivo, e não legalista e morto”.
Esses e outros fundamentos moldaram a visão e convicção de Voetius, de forma teológica e prática. Em uma perspectiva teológica, sua forma de sistematizar as verdades encontradas nas Escrituras aponta para o modelo trinitário (Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo iniciando e concluindo a missão) e teocêntrico (Deus no centro do universo, da teologia e da missão). Na dimensão prática, suas ações evangelizadoras contagiavam muitos ao redor. Tanto perto, insistindo com católicos romanos sobre a salvação mediante a fé em Cristo e somente em Cristo, como também em campos distantes. Holanda e Inglaterra se tornavam poderosas nações portuárias em sua época, e especializadas na navegação, e, assim, Voetius defendia que a expansão marítima era providência de Deus para a expansão do evangelho a partir desses países, que deveriam enviar missionários em abundância. Em seus sermões, Voetius chegava a afirmar que todos os cristãos, exceto aqueles com algum impedimento, deveriam ir para as novas e distantes terras, com a missão de proclamar o evangelho, adotar os órfãos e plantar igrejas.
Algumas aplicações para nossos dias
Observando a missiologia de Gisbertus Voetius, quatro aplicações mais objetivas vêm à mente.
A primeira é teológica. Devemos resgatar em nossos dias a ênfase da missão centrada em Deus (teocêntrica) e promovida por Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo (trinitária). Em dias de proeminência das capacidades e habilidades humanas, da multiplicação de métodos e estratégias, de programas eclesiásticos e missionários triunfalistas, precisamos relembrar que a missão é de Deus, centrada em Deus, resulta do desejo de Deus, é realizada pelo poder de Deus (que chama e envia a sua igreja ao mundo), para a glória do próprio Deus. Dessa forma, a primeira missão da igreja não é a evangelização, a tradução bíblica ou o plantio de igrejas, mas a morte. Só cumprimos a missão de acordo com o desejo de Deus, na medida que aprendemos a cada dia com o apóstolo, dizendo, “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2:20). O chamado missionário da igreja é um chamado para a humildade, reconhecendo que é Deus quem está à frente levando o evangelho às nações, e como igreja temos o privilégio de segui-lo, falando como os morávios: eis o Cordeiro, vamos segui-lo! Fazer missões com corações humildes rejeita a competição e a comparação e, ao mesmo tempo, nega as propostas triunfalistas e narcisistas, que colecionam resultados para si. Fazer missões com corações humildes busca a cooperação, valoriza os demais, partilha o que lhe foi dado e reconhece que, ao fim, tudo veio do Senhor nosso Deus.
A segunda aplicação é missiológica, sobre o foco da missão. Tudo o que a igreja faz é missão em uma dimensão mais ampla, pois somos chamados para salgar, brilhar e frutificar em nossos caminhos, relacionamentos, famílias, estudos, profissões, igrejas e em toda a sociedade. Onde há um cristão, há luz do evangelho. Nessa medida, ser um advogado íntegro, que espelha a luz de Jesus é cumprir a missão. Ser um estudante responsável, que demonstra o amor de Deus aos colegas é cumprir a missão. Socorrer aquele que chora e está aflito de corpo e alma é cumprir a missão. Nessa dimensão ampla, missão é o que Voetius chamava de piedade: sermos cristãos com as marcas de Cristo por onde passarmos. Mas a missão possui também um foco específico. É aquilo que somente a igreja pode fazer, pois é um chamado e um envio particular: fazer discípulos de todas as nações. Essa é a prioridade das prioridades, que envolve a proclamação do evangelho, o discipulado e o ajuntamento dos cristãos em comunidades de fé – plantio de igrejas. Creio que devemos, assim, retirar o muro que separa a piedade da missão (ou a missão na dimensão ampla e na dimensão particular), e caminharmos na graça de Deus para sermos sal e luz com tudo o que Ele nos dá em nossas vidas diárias, e também sermos intensos e intencionais na proclamação do evangelho até aos confins da terra.
A terceira aplicação é eclesiológica. A missão é de Deus em uma perspectiva teocêntrica (vem de Deus e é governada por Deus), mas nem tudo o que Deus faz é missão da igreja. Como igreja, não somos chamados para criar o universo, derramar o sangue na cruz ou guiar a igreja, funções do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Assim, é preciso cautela teológica e prática ao ouvirmos que a missão da igreja é a missão de Deus. É certo que a missão da igreja está submissa a Deus e faz parte dos planos de Deus, portanto ela participa nessa medida (de submissão) da missio Dei. Creio, porém, que é preciso fazer clara distinção entre a missio Dei e a missio Ecclesiae, entendendo o escopo da nossa missão. Dessa forma, iremos focar mais naquilo que o Senhor colocou em nossas mãos, que se resumem, de certa forma, em duas claras ações percebidas no Novo Testamento: o testemunho e a proclamação. Pelo testemunho (marturion), mostramos o evangelho de Cristo por meio de nossas vidas, relacionamentos, boas obras e piedade. Pela proclamação (kerugma), falamos ao mundo quem é Jesus Cristo e o que Ele faz.
A quarta aplicação é estratégica. Pensando na prioridade da missão da igreja (testemunhar e proclamar o evangelho de Cristo), o plantio de igrejas é a maneira mais eficaz de assegurar que o evangelho permaneça enraizado em uma família, bairro, cidade, aldeia ou nação por várias gerações. A evangelização alcança uma geração, mas uma igreja plantada alcança várias. Entendo que devemos, assim, priorizar onde Cristo continua desconhecido, para não edificar sobre fundamento alheio (Rm 15:20), promovendo não apenas a evangelização, mas o discipulado bíblico e o ajuntamento do povo de Deus em igrejas locais, o plantio de igrejas.
Sobretudo, guardemos os nossos corações para, na missão, fazermos o que é certo com a motivação certa, a glória de Deus. Para tal, precisamos nos desglorificar a cada dia. Que todos os povos da terra conheçam e adorem a Cristo, e seja Ele eternamente exaltado!