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Crônica de uma tradução bíblica

Finalizações freqüentemente nos trazem alívio e alegria. Especialmente aquelas que são fruto de uma longa espera.

Estamos particularmente alegres nestes dias pela conclusão do processo de tradução do Novo Testamento para a língua Limonkpeln, um dos dialetos do povo Konkomba em Gana na África. A figura que me vêm à mente neste momento é do início, quando Labuer e eu sentávamos embaixo de uma árvore próximo à minha casa e durante 3 ou 4 horas por dia trabalhávamos na ortografia da língua Limonkpeln visando, na época, apenas fazer uma cartilha e alfabetizar o povo em sua própria língua.

Foram 7 anos e meio de trabalho, um trabalho silencioso e sem resultados empolgantes durante o seu processo. No início os Konkombas não entendiam o porquê de horas e horas sobre um computador, rodeado de livros e com olhar pensativo. Ficavam a me observar durante o dia, de longe, sussurrando baixinho um com o outro.

Aos poucos a Igreja nasceu e alguns rascunhos eram usados. Aprenderam a amar a Palavra e inúmeras perguntas surgiam a cada dia. Os resumidos capítulos em mãos tornaram-se rapidamente insuficientes para a demanda espiritual. Publicamos então Mateus, Atos e Romanos que foram recebidos com expectativa. Memorizavam textos inteiros, discutiam as aplicações em reuniões sem fim. A Igreja, vendo nosso esforço, se autodesafiou a cooperar. Começou a orar e também jejuar para que tivesse a Palavra na língua, o Novo Testamento completo. Passei a me sentir constrangido (e às vezes acuado) quando resolvia tirar uma tarde livre para brincar com as crianças. A Igreja, em uma mensagem silenciosa, parecia censurar-me. Afinal a prioridade deveria ser trabalhar na tradução. Apenas o plantio de igrejas, que fazíamos em viagens pela região, sobrepunha o anseio da tradução. Era necessário progredir.

Em 1997 os lideres da Igreja Konkomba-Limonkpeln resolveram se envolver diretamente no processo. Sabiam que eu possuía um ajudante lingüístico, com tempo parcial. Decidiram ”separar” outros 3 com tempo integral. Cuidariam de suas roças daquele tempo em diante para que se dedicassem às correções do texto. Estes quatro amigos abençoados (Labuer, Balabon, Tiagri e Naason) tomaram paixão pelo trabalho e também aprenderam a trabalhar dia e noite. Creio que, nestes últimos 7 anos e meio, jamais houve um dia sem que se trabalhasse no texto do novo testamento.

Rossana e as crianças sempre foram benevolentes com meu tempo usado na tradução. Até hoje Ronaldo Junior , quando indagado onde estou prontamente responde: “papai está no computador fazendo uma bíblia”, não importa o que eu de fato esteja fazendo. Eu procurava sempre concentrar o trabalho a noite depois que todos dormiam. Era mais fresco e havia a quietude necessária.

Outro dia juntei todo o material utilizado na tradução, desde a tradução primária até a retro-tradução passando pelas 5 correções gerais. São pilhas e pilhas de papéis, centenas de e-mails trocados com consultores, inúmeras cartas em português, inglês, Konkomba, mais de 30 livros de consulta utilizados. O resultado cabe na palma da mão, em apenas um CD. Interessante.

O período de tradução foi edificante mas também houve oposição. Alguma humana, outra de fundo espiritual entretanto, mais frequentemente, física. Hoje percebo que as constantes malárias forçaram-me a permanecer mais em nossa aldeia, minimizar as viagens. Talvez a prioridade do Senhor fosse a tradução naqueles 4 anos quando desejava evangelizar mais o Togo distante mas a perseverante febre fazia-me permanecer na aldeia.

Houve também um momento de humilhação, algo que é doloroso no momento mas sempre nos relembra que somos apenas servos e nos remetendo à máxima de que aprendemos mais com as críticas do que com os elogios. Alguns lingüistas visitaram-nos duvidosos dos resultados rápidos da tradução quando finalizávamos Romanos. Pediram permissão para fazer uma espécie de auditoria de todo o trabalho e assim levaram os disquetes, livros, escritos, notas, tudo. As semanas seguintes foram constrangedoras, respondendo mil perguntas, sempre me sentindo como uma criança no primário sendo investigada pela diretora da escola. Passaram os textos por diferentes crivos e finalmente veio a aprovação do trabalho.

O resultado final foi positivo e perceberam que o motivo do rápido trabalho foi mais o irrevogável apoio da Igreja Konkomba e milhares de noites de sono reduzido da equipe de tradução do que imediatismo ou qualquer brilhantismo pessoal.

Entretanto confesso que sempre houve pressa, e muita pressa. Quem não a teria com uma Igreja orando e jejuando pelo trabalho, que a cada dia repetia, incansável, a torturante pergunta: “Quando acha que finalmente terminará o trabalho e teremos a Palavra de Deus ?”

A força da Igreja Konkomba mostrou-se viva nesta última correção. Eu precisava que a equipe de correção fizesse uma última leitura do texto, minuciosa. Assim a Igreja separou uma casa e a preparou com o cenário de quietude necessário para o trabalho, pedindo para que, durante um mês, ninguém se aproximasse. Trouxe os 4 ajudantes lingüísticos que ali permaneceriam durante 3 semanas e meia. Apontaram mulheres da Igreja que cozinhavam muito bem e proveram o alimento necessário, do melhor. Assim , praticamente isolaram este grupo nesta casa até completarem a tarefa, cobrindo-os de oração.

Dentre tantos colaboradores um primeiro precisa ser mencionado. Rev. Francisco Leonardo Schalkwijk era diretor do Seminário Presbiteriano do Norte quando logo no início do curso abordou-me com a pergunta: “Você quer ser missionário entre povos sem o evangelho?” Após ouvir uma temerosa resposta positiva passou-me a dar preciosos conselhos. Dentre vários, um deles ficou no coração: “estude bem o grego e assim você economizará anos de trabalho na tradução”. Um outro colaborador silencioso foi Mebá, primeiro convertido entre os Konkomba-Limonkpeln. A cada texto lido , durante as correções, ele sempre interrompia dizendo, benevolente: “Está muito bom e todos vão entender, mas se utilizasse esta ou aquela expressão ficaria parecendo que foi escrito por um Konkomba…”.

Falemos do presente. O sentimento ao entregar o texto é surreal. Pensava que seria algo entre a alegria e o alívio, mas foi sobretudo de temor. E se eu pudesse melhorar a expressão usada para ”longanimidade” ? Será que não é imprudência optar para ”sacrifício” o termo que historicamente tem sido utilizado no animismo fetichista ? E ainda ”Espírito Santo” que, explicativamente, teve que ser ”Espírito que é puro e é pessoa, não apenas força” certamente ficou longo em uma cultura onde a maioria dos espíritos não é personificação mas sim energia impessoal. A numerologia bíblica em uma língua onde se conta até 500 (e depois disto as regras mudam para um discurso binário extenso) torna-se muito extensa. Os “144.000” de Apocalipse 14 tomaram 5 linhas.

O Konkomba-Limonkpeln é uma das três principais línguas do povo Bikpakpaln, conhecido como “Konkomba” pelos de fora. De fato este não é um termo usado ou mesmo conhecido pela maioria para se identificar. Eles habitam as savanas no nordeste de Gana e noroeste do Togo. Formam etnias fortes, com grave valorização da cultura e orgulho de sua língua. No país são conhecidos como “Tiwoor aanib”, ou ”povo do mato” por preferir se isolar em regiões mais distantes. No imaginário popular são agressivos e senhores de guerras mas de fato são extremamente hospitaleiros e leais. Para eles a maior vergonha é mentir. A maior virtude honrar os pais quando já velhos e lembrá-los quando se forem. Os filhos são criados por todos e não há órfãos. A Wycllife trabalha há décadas com uma das etnias, os Bichaboln. Nós iniciamos o trabalho com uma segunda etnia, os Bimonkpeln e ouvimos recentemente sobre um esforço Metodista planejando alcançar a terceira etnia, os Bisachuln. Deus parece ter um plano para este povo.

Um recente encontro com o Pr. Ghunter que, junto com Dona Wanda, trabalha há 46 anos entre os Xerente no Brasil foi um encorajamento. Falaram-me sobre suas lutas e vitórias, alegrias e esperanças e deram-me preciosos conselhos de alguém que já passou por este caminho e seguiu bem mais além com testada experiência e zelo. Ao fim ensinaram uma verdade conhecida mas pouco lembrada: a experiência do nativo ao ler a Palavra em sua língua é equivalente a você estar em um país estrangeiro, solitário e perdido, e alguém lhe chamar pelo nome em seu próprio idioma. Em outubro deste ano, data da entrega do Novo Testamento, estaremos lá com a Igreja e nossa oração será: Que Deus fale poderosamente, em Limonkpeln, para os Konkomba-Limonkpeln de Gana.’, ”, 1, 3, 0, 7, ‘2007-01-25 18:16:25’, 62, ‘Ronaldo Lidório’, ‘2007-12-04 11:03:40’, 62, 0, ‘0000-00-00 00:00:00’, ‘2007-01-25 18:13:46’, ‘0000-00-00 00:00:00’, ”, ”, ‘pageclass_sfx=\nback_button=\nitem_title=1\nlink_titles=\nintrotext=1\nsection=0\nsection_link=0\ncategory=0\ncategory_link=0\nrating=\nauthor=\ncreatedate=\nmodifydate=\npdf=\nprint=\nemail=\nkeyref=\ndocbook_type=’, 3, 0, 56, ”, ”, 0, 4703), (17, ‘Diogmos – Olhando além da vida’, ‘Diogmos – Olhando além da vida’, ‘Sempre nos lembramos de Atos como um livro que descreve um Deus que intervém sobrenaturalmente. A Igreja convivia com o sobrenatural onde línguas de fogo desciam sobre os discípulos, coxos passavam a andar, demônios eram exorcizados, anjos socorriam os apóstolos e a própria sombra de Pedro se transformava em instrumento de cura. Por outro lado nem sempre Deus intervinha miraculosamente e assim Estêvão foi martirizado, Paulo preso e açoitado, homens e mulheres fiéis foram passados ao fio da espada e mortos lançados aos leões. Mas de maneira além da nossa finita lógica e curta compreensão da história, entre milagres e tragédias, o nome do Senhor Jesus era glorificado e a Igreja, resistente, avançava. É preciso olhar além da vida.

A expectativa do povo de Deus ao longo dos milênios é ver a resposta do Senhor quando chega o sofrimento. Em situações de profunda crise pessoal quando a enfermidade bate à nossa porta, o desemprego chega ou a violência ataca impiedosamente devemos esperar e rogar que o Deus do impossível faça o impossível acontecer. Entretanto Atos mostra-nos uma verdade existencialmente aplicável em muitas situações do nosso dia a dia: nem sempre Deus intervém sobrenaturalmente. E quando isto acontece Ele não deixa de ser o Senhor da situação, Dono absoluto das nossas vidas e da nossa história, Soberano e bondoso Rei. Nestes momentos quando nossa existência é confrontada com a tragédia pessoal, a doença terminal em casa, a falência do negócio, a família partida pelo divórcio ou o filho abordado pelo assaltante na rua, somos convidados a compreender que na felicidade ou na tragédia é preciso olhar além da vida e entender que o projeto maior de nossa existência – glorificar a Deus – não pode ser revogado.

O sofrimento possível

No capítulo 8 de Atos o historiador Lucas inicia a narração afirmando que “levantou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém” onde escolhe o termo grego diogmos para definir “perseguição” o qual era largamente usado para o desenvolvimento de um programa sistemático para a opressão de um povo. Distintamente de efistamai (ataque), a expressão diogmos é uma ação ligada ao sofrimento principalmente físico (causar dores, fazer sofrer, punir com sofrimento) portanto o quadro pintado por Lucas neste capítulo é de uma Igreja que passa a experimentar de forma física e violenta o amargo sofrimento e nas próximas sentenças ele descreve os ingredientes desta diogmos: o sepultamento de Estêvão, o aprisionamento dos fiéis e a dispersão da Igreja. Mas Lucas, inspirado, vai além. No versículo 2 quando é mencionado o martírio de Estêvão ele relata que houve grande “pranto”, sendo para isto usado o termo grego kopeton. Este ‘Kopetos’ (pranto) pode ser lido literalmente como “bater no peito” e indica o sofrimento emocional, a dor da alma, o choro inconformado do coração. Ao lado de diogmos esta expressão apresenta uma Igreja em sofrimento físico e emocional. O ataque vinha de diferentes lados pois paralelamente à opressão física como a fuga, prisões, martírio e espancamentos havia também a emocional como o medo, a insegurança, a saudade e depressão. No versículo 3 o historiador afirma que Saulo “assolava” a Igreja e mais uma vez escolhe cuidadosamente um termo, desta vez elumaineto, para demonstrar o sofrimento dos santos em Atos. Este termo, derivado de “lumaino”, aponta para uma assolação (destruição) não apenas física e emocional mas também espiritual e é a mesma palavra usada em João 10:10 quando lemos que o Diabo veio roubar, matar e “destruir”.

O que temos até o momento é um retrato surpreendente e cuidadosamente pintado nos três primeiros versos de Atos 8: a Igreja enfrentando fortíssimo ataque físico (diogmos), emocional (kopetos) e espiritual (lumaino), portanto uma igreja em profundo sofrimento. O contexto literário aqui existente não centraliza a Igreja mas sim o ataque a ela perpetrado, o esquema malígno que rompe sobre a comunidade de Jesus por todos os lados e a ira satânica que não deixa nenhuma frente sem oposição. Lucas relatava que o sofrimento era real e possível entre os cristãos e que esta Igreja enfrentava uma oposição sobre humana que atacava o corpo, fazia doer a alma e tentava solapar a fé. A Igreja sofria.

O sofrimento continua presente entre o povo de Deus hoje. Quando a violência cai sobre a família, o irmão tem sua vida ceifada pelo trágico acidente automobilístico, a enfermidade teima em não abandonar o corpo, o desemprego e as dívidas fazem perder o sono na madrugada, a depressão se abate profusamente sobre a alma e a fé é provada no fogo entendemos que o sofrimento é possível. Mas a fidelidade constante de Deus mostra-nos que mesmo no mais terrível sofrimento Deus continua sendo Deus, e nunca se ausenta. Mesmo quando Ele se silencia em momentos que esperávamos um poderoso e miraculoso grito, Ele continua Pai de seus filhos e Senhor de nosso destino. Quando o Senhor se cala é preciso olhar além da vida em total dependência filial e saber que Deus é maior que os homens.

Cantamos um hino aqui em Gana que diz:

“… não vivemos para celebrar o sofrimento; nem também para chorar;
mas quando ele vier choraremos;
… no sofrimento há Deus;
não cremos na dor sem Deus, não cremos na dor sem Deus “

O Deus do impossível

Entretanto existe o outro lado da moeda que nos incita a esperar contra a esperança e crer no Deus dos milagres. Compreender o sofrimento como fato possível na vida do crente não implica em perdermos a expectativa de ver Deus abrir os céus e intervir miraculosamente. Fomos geneticamente nascidos em Cristo com a tendência de esperar que o impossível pode acontecer. E assim a resposta de Deus ao seu povo em Atos 8 vem nos três versículos seguintes e Lucas escreve neste texto, com todas as letras, que Deus tem sempre a última palavra em nossas vidas.

No versículo 1 a Igreja sofria quando “foram dispersos pelas regiões da Judéia e Samaria” mas no verso 4 veio a tremenda e acachapante resposta do Senhor: “Entrementes os que foram dispersos iam por toda parte pregando a palavra”. Mesmo no sofrimento humano Deus fazia a história caminhar para a glória do Seu Nome e o avanço da Sua Igreja.

No versículo 2 o evangelho sofria com o martírio de Estêvão, pregador da palavra e homem cheio do Espírito Santo. Caía alí um grande líder e incansável pregador. Mas Deus no versículo 4 dá resposta ao sofrimento levantando Filipe, também cheio do Espírito, e este “descendo à cidade de Samaria anunciava-lhes a Cristo”. Caía Estêvão. Deus levantava Filipe.

No versículo 3 homens e mulheres eram arrastados e encarcerados após terem feito grande pranto sobre Estêvão, a Igreja perseguida se dispersava e a violência se abatia sobre famílias inteiras. Tristeza e melancolia seria o quadro humanamente esperado para encerrar esta história entretanto no verso 8 o texto conclui dizendo que “houve grande alegria naquela cidade”. Deus fazia o impossível acontecer tanto no corpo, na alma e na fé do Seu povo.

Gostaria que entendêssemos que o nosso Deus, em sua e minha vida, nunca será surpreendido. A despeito do possível caos em sua vida, das inúmeras batalhas perdidas, do vazio no coração, da falta de fé, da ausência de respostas esperadas, Deus – na história da sua existência – nunca foi ou jamais será surpreendido por qualquer fato ou acontecimento que tente lhe roubar a expectativa de um dia voltar a ser feliz. Ele detém o direito autoral de escrever cada capítulo da sua existência, é Soberano e tem domínio sobre a sua história pessoal mesmo quando se cala.

Mas Deus fala ainda hoje. E perante a insistente afirmação médica de que poucos meses lhe restam, ou todas as estatísticas sociais de desemprego que apontam para mais um ano sem trabalho, ou ainda defronte do nefasto e incansável ataque do Diabo em seu lar, do casamento que parece não ter mais jeito ou do filho que prometeu nunca voltar ao lar, creia que o Deus dos impossíveis pode fazer o impossível acontecer.

Mesmo quando o sofrimento vem, Deus permanece no controle de nossas vidas e portanto também no controle do nosso sofrimento. Olhar além da vida é olhar para o projeto maior na mente do Senhor, é reconhecer que Deus é maior que o homem, que a glória de Deus importa mais do que a nossa glória. Não creia na dor sem Deus

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