A Armadura de César e a Panoplian de Deus
1876. Don Capricio, bispo católico romano, ministrava a palavra inicial na convenção regional hospedada em Taranto, sul da Itália, quando afirmou que ‘A Missio Dei, pela sua supremacia bíblica, dispensa a Missão da Igreja. Somos apenas contempladores das maravilhas do Deus que faz ’. Apesar da ênfase deísta gostaria de, após 122 anos, contestar esta proposta eclesio-missiológica que apoderou-se etogenicamente da nossa consciência cristã pós moderna. A Igreja não é um membro contemplativo do Reino de Deus, excluída da Missio Dei e chamada a ser exangue, alienada, sem vida e sem paixão. Ela é parte do Projeto de Redenção escrito pelo Senhor para a salvação de todo aquele que crê.
Don Capricio entretanto não se distancia muito da errática tendência cristã atual que tenta incluir-se nas bênçãos do evangelho e auto excluir-se de sua prática: a anti bíblica vontade de ver a terra arada sem por as mãos no arado.
Revestida de Autoridade. Mas para que ?
1a Cena: Lucas 11:21,22 expõe sobre o “valente” – (‘ischuros’: alusivo a Satanás) – o qual “bem armado” – (‘kathoplismenos’: pronto para guerrear) guarda a sua própria casa mantendo suas posses em segurança quando surge então o “mais valente” – (‘ischuroteros’: o próprio Jesus), o qual luta e derrota o inimigo e tira-lhe a “armadura” (‘panoplian’: proteção) na qual confiava passando a dividir os despojos.
2a Cena: Efésios 6:12,13 enfatiza que a nossa luta não é contra “sangue e carne” (‘aima kai sarka’: o conjunto das tendências humanas) mas sim contra toda uma nefasta manifestação espiritual do mal tais como “principados” (‘archas’: tiranos que se auto nomeiam príncipes); “potestades” (‘exousias’: forças de combate) e “dominadores deste mundo tenebroso” (‘kosmokratoras’: estrategistas do mal); e logo após exorta-nos a tomar a “armadura”(‘panoplian’: proteção) de Deus para termos vitória até no dia difícil.
Lucas 11 e Efésios 6 são os dois únicos textos onde “armadura” (Panoplian) aparece no Novo Testamento neste sentido. Panoplian entretanto não se refere a uma simples armadura. No contexto romano soldados comuns usavam ‘armaduras’ (‘elekoi’) para proteção, forjadas de metal que cobriam parte do corpo do guerreiro. Porém Panoplian refere-se a armaduras usadas por oficiais com o brasão do Imperador que além da proteção indicavam a autoridade daqueles que representavam ali os interesses do Império. É fácil imaginar que esta marca de autoridade possuía mais que um objetivo simbólico. Em meio ao afã da batalha o brasão do Império lembrava porque estavam ali. Inspirava. Indicava o caminho. Concedia um motivo pelo qual lutar, ou morrer. Mas, acima de tudo, trazia sobre si todo o peso da própria pessoa do Imperador e a letalidade do seu Império. Levantar uma espada contra um oficial de César seria uma afronta ao próprio César pois por César havia sido enviado. Residia aí toda a raiz de autoridade e confiança dos que vestiam a Panoplian de César numa guerra romana.
Em Lucas Jesus retira a Panoplian do Diabo para revestir a Sua Igreja da Panoplian de Deus em Efésios. Como um povo revestido da autoridade de Deus precisamos entender que tudo o que somos bem como a vitória que temos baseia-se unicamente na pessoa do Rei. Enquanto Deus for Deus a Igreja será Igreja, com autoridade e poder.
Estes dois textos chamaram-me a atenção quando traduzia o livro de Lucas para o Limonkpeln, um dos dialetos Konkombas e, após realizar a primeira prova de leitura para os líderes nativos da nossa igreja em Koni, um deles perguntou-me: “temos autoridade do Senhor em nossas vidas porque Jesus venceu. Isto eu entendo. Mas autoridade para que ? Em nossa cultura somente revestimos alguém com a autoridade do chefe quando ele é enviado a uma missão especial como adentrar uma aldeia inimiga, representar o seu povo no ‘nyuinn’ (uma festa para guerreiros de todas as aldeias da região) ou quando alguém, durante um conflito tribal, vai até a terra rival dar uma mensagem de paz. Quem não corre riscos não precisa de autoridade”. Era um presbítero, representante de um povo até quatro anos atrás totalmente intocado pelo evangelho que, mesmo sabendo apenas os rudimentos da Palavra, percebia que a autoridade do Senhor sobre a Igreja tem um objetivo: proclamar o Reino de Deus; e assim perguntava: “autoridade para que ?”
Para chamar, até a última fronteira
A Igreja do Senhor Jesus foi chamada a exercer, e não contemplar, sua autoridade. Fomos revestidos da Panoplian de Deus não para nos tornarmos um corpo fechado em si próprio residindo em terra firme, mas para uma Missão como forasteiros e peregrinos em lugares incertos. A Palavra nos incita a arar, salgar, iluminar, transformar, proclamar, instar, pregar a tempo e fora de tempo tanto aos de perto quanto aos de longe, chamar até à última fronteira. Precisamos desregionalizar a Igreja e o compromisso com o evangelho, e para isto é necessário sacramentalizarmos mais os santos e menos os templos. Missões não pode ser um programa eclesiástico – é a forma de viver da Igreja.
A Palavra expõe que “muitos são chamados e poucos escolhidos ”. As vezes creio que é necessário discutirmos menos sobre a Missão de Deus – escolher – e exercermos mais fidelidade sobre a Missão da Igreja – chamar. E chamar com autoridade tanto os de perto quanto os de longe. É certo porém que há muito o que chamar.
Longe. Há ainda em nossos dias cerca de 8.000 PNAs (Povos Não Alcançados), 300 milhões de aborígenes que nada sabem de Jesus (e isto é quase o dobro da população de todo o Brasil), mais de 300 ilhas onde mais de 90% de seus habitantes nunca receberam sequer um testemunho do evangelho de Cristo e 4244 línguas sem sequer João 3:16 traduzido em seu idioma. No norte africano e mundo oriental há em média apenas 1 missionário para cada 7 milhões de habitantes, em diversos países mais de 200 grupos nômades permanecem ainda intocados pelo evangelho e apenas ao meu redor, entre os Konkombas, posso nomear pelo menos 40 aldeias com uma população total de 50.000 pessoas que nunca, sequer uma só vez, ouviram o nome Jesus. É necessário chamar.
Perto. Em nosso Brasil somos chocados por uma causticante calamidade social a partir da nossa esquina, necessidade de um puro evangelismo que contraste com o apelo superficial visto em tantos lugares, o espiritismo avançando sem alarde, as drogas avançando com estrondo, a necessidade de convencer os crentes a abrirem suas bocas para falar do Deus vivo. Um pouco mais a parte, longe das grandes cidades, encontramos neste país onde o evangelicalismo se fortalece nas igrejas e sociedade, ainda mais de 100 tribos indígenas totalmente intocadas pelo evangelho. É necessário chamar.
Em Santidade de vida
Voltando ao Brasil em 1996 após 3 anos na África vi pela primeira vez em Belo Horizonte um outdoor com uma expressão que intrigou-me: “Está amarrado”, e um laço ao redor. Pensei tratar-se de um rodeio. Mais a frente, no vidro traseiro de um ônibus urbano surgiu a frase completa: “Está amarrado em nome de Jesus”. Imediatamente percebi que não se tratava de um rodeio evangélico. O pastor ao meu lado explicou-me pacientemente: “É uma expressão de autoridade contra a influência demoníaca”. Até chegarmos à igreja onde falaria sobre Missões fiquei a pensar no fundamento da autoridade cristã e é necessário nesta altura afirmar que, apesar da autoridade cristã em uma perspectiva bíblica basear-se em nossa identidade, quem somos em Cristo, seria uma hipocrisia nos modelos do evangelho usarmos de autoridade espiritual para “amarrarmos” qualquer força maligna no mundo que vivemos – incluindo a atuação missionária local ou transcultural – se não nos dispomos a primeiramente “amarrar” o pecado carnal que controla a nossa vida.
A autoridade cristã baseia-se naquilo que somos e naquilo que somos chamados a ser: nação santa. É necessário desassociarmos a Panoplian, autoridade de Deus, da figura única de uma Igreja lutando face a face com o Diabo. A Panoplian de Deus antes de mais nada deve ser exercida quando nos trancamos em nossos quartos, confrontamos a nossa fé com aquilo que experimentamos em nossas vidas, tratamos o pecado como pecado, choramos as lágrimas amargas do pecador, somos perdoados, transformados, nos renovamos no Senhor, o Espírito Santo aponta o caminho, seguimos, saímos do quarto novos e limpos outra vez. Somente uma Igreja santificada em seu quarto alcançará os homens no mundo.
Antes de servir para expor o evangelho de Deus, a Igreja foi revestida de autoridade para ser santa, fiel e viver toda a plenitude do evangelho. Não somos abages gauleses sujeitos às intempéries dos astros. Somos servos de um Deus que sabe o que quer. E ele quer usar um povo que seja santo.
Contra Principados e Potestades
A Palavra diferencia o “Império das trevas” e “Reino da luz” onde Império pressupõe um poder imposto, usurpado e mantido pela tirania enquanto Reino retrata um poder reconhecido e legitimamente instalado. Efésios 6:12 expõe que a raiz da luta na qual estamos inseridos não é contra as expressões humanas mas sim contra as raízes malignas. Pinta-nos o quadro do Império satânico: a guerra pela ilegítima possessão daquilo que nunca lhe pertenceu: o coração do homem.
Três anos atrás estava evangelizando uma nova área entre a tribo dos Konkombas, ao norte de onde estamos, em uma região na época totalmente isolada e remota chamada Molan. Após um culto pela manhã conversava com os recém-convertidos quando subitamente um homem possesso veio ao nosso encontro. Labuer, um dos presbíteros da igreja em Koni, levantou-se dizendo para continuarmos que ele lidaria com o assunto. Levantei-me surpreso quando, atônitos, percebemos que aquele homem não estava falando em Limonkpeln, o dialeto Konkomba da região. Aproximei-me e ele passou a falar comigo em um belíssimo inglês com sotaque britânico. “Em que língua ele está falando ?” – perguntavam todos ao redor. “Em Likal” – respondi. Likal para os Konkombas é a língua do Ukalja – homem branco – e era nestes dias totalmente desconhecida na região de Molan. Aquele homem olhou para mim e lançou-me duas perguntas: “Você pensa ser o único que estudou teologia ? Você pensa ser o único que estudou grego ? Eu também entendo de teologia e grego !”
Após uma palavra de autoridade o homem foi liberto e fomos à sua palhoça orar por ele e sua família. Sentado entretanto na canoa de volta para Koni fiquei a pensar. O demônio que falava inglês britânico conhecia até mesmo minha formação teológica e lingüística. Veio à minha mente Efésios 6: 12, os “dominadores deste mundo tenebroso” – ‘Kosmokratoras’.
Kosmokratoras é um termo grego que se refere a grupos de estrategistas helênicos que reuniam-se durante épocas de guerra, sentados em uma mesa redonda, com o objetivo de estudar as informações e traçar planos de sabotagem contra o exército inimigo. O Espírito Santo decidiu usar esta mesma palavra, Kosmokratoras, para seres espirituais a qual foi traduzida pomposamente como ‘dominadores deste mundo tenebroso’ em português e que aponta para um grupo de seres malignos o quais, cientes da situação do inimigo (no caso o Reino de Deus) traçam planos de sabotagem contra a Igreja que avança.
Funcionalmente Kosmokratoras expõe um grupo maligno organizado contra a expansão do evangelho e não um grupo desatinado de demônios voando aleatoriamente para todos os lados em atitudes impensadas. Porém até mesmo neste quadro temos a Panoplian de Deus sobre nós.
Neste contexto seria fácil cairmos na tentação de espiritualizarmos toda a Missão da Igreja, entretanto o verso 20 coloca novamente os nossos pés no chão: Paulo preso, em prisão humana, almejando tão somente abrir a sua boca e falar a outros do evangelho de Cristo. Lembra-nos que nossa luta não é contra o sangue e a carne mas é pela libertação do sangue, carne e espírito que lutamos, para a glória de Deus.