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Totemismo

Conceitos gerais e a compreensão da força da vida na cosmovisão de um grupo totêmico

Ronaldo Lidorio

Introdução e conceito

Neste artigo tenciono abordar o totemismo como conceito social e suas variadas formas de experiência do ponto de vista puramente antropológico.

Não me dedicarei a mencionar as diversas teorias sobre o totemismo, desenvolvidas por Frazer, Spencer, Roth, Lang e outros, nem mesmo o conceito original deste estudo a partir de McLennan. Meu intuito é apresentar o totemismo e sua correlação com a força da vida, regulando assim as práticas sociais.

Goldenweiser em sua dissertação “Totemismo: um estudo analítico[1]” retira o simplismo no trato do totemismo apenas através de sua ligação com os diversos tabus e clãs. Com isto ele desloca o assunto da área puramente etnográfica e o coloca no mundo das idéias e identidade social, a etnologia. Ou seja, totemismo é uma concepção advinda de uma forma de interpretar o mundo ao seu redor, cosmovisão, e não apenas um agrupamento de práticas clânicas.

Emile Durkheim, baseando-se no estudo do grupo Arunta da Austrália, diz que a base da religião é o totemismo e não a magia como pensam alguns, pois o primeiro faz a ligação entre a forma que o homem se posiciona na natureza e seu critério religioso. Afirma, de forma metafórica, que o totem é a bandeira de um clã. São símbolos que transcendem sua aparência e identidade objetiva apontando para um grupo humano.

Classicamente conceitua-se totemismo como um conjunto de idéias e práticas que tem como base a crença na existência de um parentesco místico entre seres humanos e a natureza, como animais e plantas. O estudo do totemismo na antropologia cultural se dá a partir de uma percepção sócio-filosófica de clara interação entre o homem e natureza. Strauss defende que tal ligação é sentida e se passa no inconsciente do grupo[2].

O clã Binaliib da etnia Konkomba de Gana, na África, por exemplo, sente-se histórica e socialmente ligado ao leopardo, fazendo com que o clã receba seu nome, compartilhe seu território de caça, creia que há uma explicação mística de tempos recuados para esta integração e sente-se ‘misturado’ ao perfil daquele animal, crendo que experimenta e compartilha sua força, resistência e velocidade.

A partir desta ligação totêmica surgem tabus e normas. Por vezes leis. No caso Konkomba, o clã Binaliib não poderá caçar ou comer um leopardo. Não poderá também partilhar das mesmas presas que ele ou transitar com muita liberdade em seu território de caça. No caso extremo de ataques de leopardo de forma constante em uma área Binaliib, pede-se a um membro de outro clã que possa caçá-lo. As habilidades do leopardo são valorizadas entre os Binaliib. A velocidade e força são valores ensinados para as crianças como associados ao totem crendo que, aqueles que desenvolverem tais habilidades possuirão maior associação com o animal. Os velhos utilizavam a expressão ndjotiib (irmãos de sangue) quando se referiam aos leopardos.

A força da vida e a associação dos elementos

Apesar do totemismo ser popularmente apresentado desta forma, a partir de uma união mística entre homem e natureza, seu conceito é bem mais amplo e creio que se dá a partir da cosmovisão de um grupo em relação à vida. Tenho defendido que está especificamente ligado a cosmovisão de um povo em relação à força da vida. Goldenweiser concorda que os tabus quanto a caça e localização do grupo não podem ser apontados como a origem do totemismo, sendo mais seu desdobramento[3].

Os grupos humanos, e de forma especial os animistas, possuem um claro conceito em relação à força da vida. Alguns a localizam em um deus, ou deuses, outros no próprio homem, na natureza, e ainda outros a julgam autoexistente. Desta forma pensaríamos que, nos grupos que aqui chamaremos de totêmicos, a religiosidade não está centrada no homem, na natureza ou nos espíritos mas sim na força da vida. A força que provê e regula a vida. Tudo o que é visível ou sentido a possui.

Os Chakalis de Gana, totêmicos, crêem que o espírito que dá vida ao homem encontra-se enterrado sempre perto de uma grande árvore[4]. Ao nascer um menino Chakali, o espírito ali enterrado se transporta e ocorre o mantiib, que é o momento do nascimento, que significa de fato associação, ou seja, o momento em que aquele espírito até então enterrado se associa a criança. O tipo de espírito (se forte, fraco, em desenvolvimento) coincide com o tipo de árvore que o retém em sua sombra (território) coincide com o status do clã. Por isto a mobilidade social é impossível entre clãs, sendo que seu espírito humano, caráter e força, são definidos nesta associação logo no nascimento.

De certa forma, portanto, podemos compreender que a base do conceito de totemismo está enraizado na associação entre elementos. A crença de que alguns elementos não humanos estão conectados aos homens, em certo grupo ou clã.

Transferência e o conceito de pares

Tal força da vida, autoexistente, se manifesta transferindo vida para outros elementos da natureza: plantas, elementos inanimados, vento, animais, homens e assim por diante. Podemos concluir, portanto, que grupos totêmicos se baseiam na crença de que o universo é vitalizado por uma única força que se associa a seus habitantes, animados ou inanimados, fazendo com que sejam os homens apenas parte do todo, dependente do todo, ligado ao todo.

Este conceito totêmico primitivo de religiosidade, ligação mística entre o homem e a natureza, se transforma em totemismo (ou seja, a elaboração da crença) a partir da observação humana. Isto ocorre quando membros de um certo grupo, observando a vida e seu processo, intuem a ligação entre seu grupo humano e certa parte da natureza, entendendo assim que o mesmo tipo de força que vivifica tal parte da natureza também o faz em seu grupo. Estas descobertas estão presentes nos mitos totêmicos. Falam abundantemente sobre momentos em que os velhos observaram uma reação estranha da natureza em relação ao seu povo. Tais descobertas (mencionadas nos mitos, contos e lendas) falam quase sempre sobre atos de resgate ou ajuda de animais ao grupo, em momentos de perigo. Ou sobre um pássaro que cantava mais alto quando tal grupo por ali passava. Ou um vento que soprava mais forte. Um leopardo que andou, manso, ao lado de um velho por toda trilha. A raiz de certa árvore que se assemelha às veias do corpo. Uma mata que serviu de proteção para um grupo perdido, e assim por diante.

De certa forma o totemismo é um conceito filosófico binário relacional. Funciona em pares e a sabedoria dos velhos é utilizada na identificação destes pares na natureza, especialmente aqueles elementos que se relacionam com os homens. Seria o reconhecimento de que a força da vida, por algum motivo, se distribui de par em par na natureza. Assim o par de certa família seria o vento enquanto de outra a onça. Este aspecto binário relacional é amplo em contextos animistas e pode se manifestar tanto no totemismo, na magia, quanto também nos ritos e na visão dualista (macho e fêmea, positivo e negativo, alto e baixo) do universo.

O totemismo como forma de integração clânica

MacLennan desde o início associou o totemismo com a geração de tabus. Se olharmos para o grupo Konkomba, por exemplo, veremos que alguns clãs totêmicos possuem restrições parecidas. Um totem, assim, que pode ser um objeto, planta ou animal, é visto como tendo uma relação de associação com o clã e como resultado, membros deste clã devem tratá-lo de forma especial. Observando a cosmovisão Konkomba[5] percebe-se que estes se associam com animais, a respeito dos quais não se pode caçar, comer e usar sua pele em nenhuma aplicação. Os principais clãs são associados com o likpaar (gorila), unpin (crocodilo) e Kun (cobra). Totens normalmente criam uma integração do grupo a partir dos tabus. Aquele grupo seria identificado, portanto, como aqueles que seguem certas normas preconcebidas.

Ao entrevistar membros de grupos totêmicos tenho percebido que há alguns conceitos geralmente aceitos:

   
    Há uma clara conexão entre todos os elementos da natureza. Alguns são opostos, outros paralelos, outros associados, mas todos estão de certa forma conectados, por partilharem a mesma força da vida.
   
    Tal associação (ligação totêmica[6]) é normalmente sentida por pessoas com maior sensibilidade mística. Normalmente velhos ou xamãs. Suas descobertas são explicadas e passadas para o grupo que trata de normatiza-las, ou serem normatizados por elas.
   
    O totemismo geralmente produz tabus e normas que regulam parentesco, função social e habilidade. No mundo religioso a invocação, pajelanças, benzimento e magia.
   
    O totemismo, de certa forma, é a procura pelo par que compartilha a mesma força da vida. Com tal par haverá uma ligação mística benéfica caso certas leis sejam observadas, o que é sempre um ensino empírico do velho para seu grupo. Em um segundo momento transforma-se em tradição.
   

Quero crer que grupos totêmicos, de forma geral, percebem que quanto mais elaborada for a vida, maior força da vida foi ali conferida. Assim pedras, em seu estado natural, possuem menos força da vida do que animais e estes menos que os homens. E se é a força da vida que provê esta ligação mística entre todas as partes da natureza podemos concluir que há uma clara conexão em toda a vida, ou em tudo que tem vida. Da mesma forma que a fruta está conectada a vida, também está o animal, a pessoa e o grupo.

Pensemos agora no desdobramento deste conceito em relação a integração do universo a partir da força da vida. Inclui, portanto o conceito de transferência em que a força da vida, de certa forma, se autotransfere de elemento para elemento, ali se manifestando. Assim não há morte final ou nascimento inicial, apenas transferências. Esta percepção do universo, segundo estudiosos como Radcliffe-Brown, é possivelmente o maior fator de coesão entre grupos animistas totêmicos pois não raramente o totemismo torna-se definidor do status social, dos clãs, regula assim os relacionamentos e até mesmo indica uma hierarquia social.

Valor moral e manipulação da força da vida

Em uma cosmovisão totêmica, normalmente o universo não é bom ou mal sendo que todas as partes partilham da mesma força. Portanto não é incomum o estudo de grupos totêmicos serem identificados como grupos com um senso de moral menos dialético, com uma divisão moral mais diluída, entre o bem e mal. Em tais grupos o universo é habitado quase sempre por seres a-éticos, bons e maus, mais ou menos associados ao homem.

Por outro lado o totemismo é uma crença baseada no fatalismo. Os velhos e sábios, em um primeiro momento, apenas observam e descobrem os segredos que manifestam as associações, as ligações místicas na natureza. Procuram os pares. Não influenciam tais escolhas, apenas as identificam. Somente em um segundo momento é que surge sua manipulação através dos elementos naturais, da magia. Porém é uma manipulação limitada, que atua sobre uma verdade predefinida, pré associada, na cosmovisão de um grupo totêmico. Tais grupos, portanto, vivem debaixo de um conceito de fatalismo universal. O universo é predefinido, as ligações místicas de associação podem ou não ser identificadas pelos velhos. Manipular a natureza, magia, é uma forma de minimizar o sofrimento ao qual a humanidade está destinada.

Portanto a magia, manipulação de elementos naturais (com força da vida) para produção de efeitos sobrenaturais também está debaixo de um conceito geral totêmico. Ocorre quando os homens descobrem os segredos da força da vida, seus códigos que a fazem funcionar e transitar pela natureza. Seus relacionamentos binários. Quando os primeiros estudiosos relataram que toda magia é simpática[7], ou seja, parecida, estavam homologando o que tenho chamado de conceito binário relacional. Que o pensamento primário totêmico intui que há pares relacionais na natureza, que compartilham a mesma força da vida. Identificá-los é a plataforma para a consciência totêmica em um grupo. Manipular estes e outros elementos, a partir de tal conhecimento e descoberta, a fim de produzir efeitos desejados, é prática na qual se fundamente a magia. Holdedrege identificou a ligação entre totemismo e ritos de passagem[8] estudando os Bajok e percebendo que não apenas a magia mas também os ritos estão profundamente ligados a esta crença de associação entre homens e elementos da natureza definindo a forma e as regras para os rituais de passagem.

Em relação a tal manipulação nosso estudo de totemismo e magia se fundem. Podemos perceber que:

   
    O descobrimento destes segredos da natureza (ou força da vida) provê o necessário para sua manipulação mágica, e a base para tal descobertas se encontram nos pares, nas semelhanças.
   
    A tradição é a manutenção das práticas, tabus e crenças de relação místicas entre elementos da natureza sem que se consiga explicar tal relação.
   
    Ritos, pajelanças, magias, são manifestações de descoberta, ou procura, dos segredos da força da vida.
   
    O homem, em uma cosmovisão totêmica, está no centro do universo por possuir mais consciência desta força da vida.
   
    A força da vida é quase sempre boa, porém imperfeita, por permitir mazelas, conflitos, doenças (desequilíbrio).
   
    O grupo totêmico e mágico possui normalmente um perfil aético por sua crença no valor utilitário da força da vida. Ou seja, se ela pode ser manipulada, seu valor utilitário é maior do que sua força moral, caso haja uma força moral.
   

Conclusão

Portanto expomos neste texto que totemismo é uma crença na qual se percebe que os homens e demais elementos da natureza se relacionam, de forma binária, a partir de semelhanças na distribuição da força da vida. Para um grupo totêmico, compreender esta relação é compreender o universo. Manipular esta relação é magia. Experimentá-la é descobrir os códigos de relação entre os totens, o que acontece nas pajelanças, ritos, atos de magia e invocação. Tal concepção, totêmica, é a base de integração de um grupo por ser construída, sobre ela, suas normas relacionais, clânicas, hierárquicas e invocatórias. Tal força da vida é autotransferível, fazendo com que não haja ponto de início ou fim da vida no ciclo de existência de um indivíduo. Tal força da vida é também boa, porém imperfeita. Fazendo assim com que o universo ganhe uma cor volátil em relação aos valores morais. Busca-se o que é utilitário, o que funciona, e não o que seja certo ou bom. Tem primazia atos, posturas, relações e crenças que podem solucionar os conflitos da vida.

Desta forma a força da vida estaria no centro do universo. Ao seu redor a humanidade, os espíritos, a natureza inanimada e animada – tudo aquilo que se manifesta, é visível e pode ser sentido. Grupos totêmicos, porém, se auto incluem no centro do universo, onde está a força da vida, por crerem ter descoberto seus códigos (seus segredos), ou possuir mecanismos (pajelanças, magia, ritos etc) que possam manipulá-la. Daí o perfil utilitário de tais grupos na base dos relacionamentos, humanos ou místicos.

[1]GOLDENWEISER – Totemism: an analytical study – 1910:88

[2] STRAUSS, Claude, 1908-. Totemismo hoje. 2.ed. -. São Paulo: Abril Cultural, 1980.181p.

[3] American Anthropologist. Oct 1912, Vol 14, No 4: 600

[4]Ver casos semelhantes em RADCLIFFE-BROWN, A R, 1952, Structure and Function in Primitive Society, London: Cohen and West.

[5] LIDORIO – Cultural Identity and Religious Phenomenlogy: The Impact of the Gospel in a Konkomba Worldview 2000:10 – Não publicado.

[6]Como defendido por FORTES, M, 1965, African Systems of Thought, New York: Oxford University Press.

[7]Como expõe MALINOVSKY em seu livro – Magia, Ciência e Religião. Lisboa: Edições 70.

[8]C. P. HOLDREDGE – Circumcision rites among the Bajok (American Anthropologist, Vol 29: 661-69 – 1927)

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